RESUMO
Em
1918, no hospital militar de Pasewalk, o psiquiatra professor Edmund
Forster trata, por meio da hipnose, o cabo Adolf Hitler de uma
"neurose de guerra" (cegueira histérica). Em 1933, Hitler assume o
poder sobre a Alemanha nazista. Pouco tempo depois, Forster entra em
contato com um grupo de escritores que viviam em exílio em Paris e passa
sigilosamente a eles os seus conhecimentos sobre o caso. O escritor
Ernst Weiss, também médico, usa essas informações de Forster para
escrever o seu romance A Testemunha Ocular (Der Augenzeuge), que
é publicado somente em 1963. O professor Forster comete suicídio
em 1933, depois de sofrer uma campanha de denúncias difamantes. Weiss
também se suicida em 1940, quando as tropas alemãs invadem Paris.
Várias outras pessoas relacionadas ao boletim médico sobre Hitler são
assassinadas pela Gestapo.
Introdução
"(...)
às vezes eu tinha a impressão de que os doentes mentais e os quase
loucos tinham mais influência sobre as pessoas saudáveis do que
vice-versa."
Ernst Weiss – A Testemunha Ocular
Ernst Weiss – A Testemunha Ocular
Esta
é a história de um prontuário médico e das pessoas relacionadas a
ele: médicos, escritores e militares de alta patente. Do ponto de
vista psiquiátrico, pelos critérios atuais, o diagnóstico registrado
neste prontuário é de uma anestesia e perda sensorial dissociativas
(CID-10: F44.6).
Os
episódios que compõem esta história ocorrem em diferentes localidades
geográficas. Aparentemente, no início, não há correlação entres os
diferentes acontecimentos que serão relatados. Os fatos encontram-se
somente pela associação da psiquiatria, da literatura e da história,
todos documentados em um romance fictício que une, num casamento
curioso, a psiquiatria à política (Bloecker, 1966).
Uma
parte da história começa em Munique, uma outra nos leva aos campos
de batalha da Primeira Guerra Mundial, na região de Ypern, Bélgica, e
a terceira parte acontece em Maehren, na então Tchecoslováquia. Além
disso, fatos importantes também se dão em Viena, Praga, Berlim e no
região do Báltico. Ao final, todos os fatos nos levam a Paris.
A
história deste prontuário médico especial é uma "história triste sem
consolação" – usando as palavras de Thomas Mann –, que termina com
três assassinatos e dois suicídios. Mas este prontuário desapareceu.
Da história, somente resta a parte que virou literatura e pôde ser
conservada. O manuscrito do romance foi achado por acaso.
Robert E. Forster
Robert
Edmund Forster nasceu em 3 de setembro de 1878, filho de Josef
Forster, professor de fisiologia e nutrição da
Ludwigs-Maximilians-Universitaet de Munique, Alemanha, e de sua esposa
Wilhelmina.
A família do
pai é procedente da região do lago de Constança, na bacia do rio
Reno. Sua mãe, oriunda de uma família patrícia conhecida de
Augsburgo, na Baviera, era parente do major Roland von Hoesslin,
assassinado em outono de 1944 por causa de sua participação na
oposição contra Hitler (nota da tradutora: Roland von Hoesslin,
nascido em 21 de fevereiro de 1915, era Major do Exército Alemão. Ele
foi informado, em agosto de 1944, por Claus von Stauffenberg, do
planejamento de um golpe de estado para depor Hitler. Embora o golpe
nunca tenha sido levado a efeito, simplesmente por causa deste
conhecimento von Hoesslin foi detido pela Gestapo e morto em outubro
de 1944).
Robert Edmund
Forster estudou medicina em várias faculdades européias. Concluiu o
seu doutorado em 1901, em Estrasburgo, com um trabalho sobre
neurofisiologia. Em 1909, recebeu sua livre-docência na universidade
Charité, em Berlim.
A
vocação de Forster para a psiquiatria surgiu após alguns anos de
trabalho no departamento de Anatomia, em Genebra e em Halle. Da mesma
forma, ele também se interessou pela medicina militar, ingressando
no Corpo Médico Militar da Marinha Imperial em agosto de 1898.
Dezesseis anos depois, em agosto de 1914, tornou-se médico-chefe da
Marinha. Tendo atuado inicialmente no hospital militar Kiel-Wik e na
Escola de Oficiais da Marinha, Forster foi convocado, em 1916, após a
invasão da Bélgica, para assumir a posição de capitão-tenente no
Hospital de Guerra da Marinha em Bruges. Seu superior era o Dr. Heinrich
Schmidt, médico-chefe-general e diretor do Hospital de Guerra da
Marinha, que escreveu, em 1918, o seguinte sobre Forster:
"O
médico da Marinha, professor doutor Forster trabalhou do dia 1º de
janeiro de 1915 ao dia 3 de setembro de 1918 como médico-chefe no
departamento de Psiquiatria do Hospital de Guerra II da Marinha. Em
tempos de paz, ele era livre-docente no departamento de psiquiatria
da Faculdade de Medicina da Universidade Charité de Berlim. Graças
aos seus amplos conhecimentos científicos, ele tinha grande sucesso no
departamento. Era um excelente clínico e também um experiente
perito para a Corte Militar. Como era uma pessoa muito enérgica e viva,
ele empenhava-se particularmente no tratamento de pacientes
acometidos pelas chamadas neuroses de guerra. Em alguns casos, porém,
atuava de forma bruta, exigindo do paciente a mesma força de vontade
que ele tinha para trabalhar. Seus colegas gostavam dele por seu
jeito gentil e incentivador. Nos últimos meses, dava também aulas de
histologia na Universidade de Gent. Durante a guerra, ele foi
condecorado com a Cruz de Mérito de Primeira e Segunda Classes"
(Horstmann, 2004).
Nesse contexto, torna-se importante ressaltar os trabalhos científicos realizados por Forster, como A guerra e as neuroses traumáticas (Der Krieg und die traumatischen Neurosen), em 1915, e O tratamento da fobia de guerra (Zur Behandlung der Kriegszitterer), em 1917. O trabalho mais importante de Forster é, provavelmente, Reação histérica e simulação (Hysterische Reaktion und Simulation), artigo publicado em 1917 no Monatschrift für Psychiatrie und Neurologie, editado por Karl Bonhoffer.
A
suposta "brutalidade" de Forster no manejo de seus pacientes,
mencionada pelo Dr. Heinrich Schmidt, foi também assinalada por um de
seus assistentes, que revelou que "o médico achava que, na maioria
dos casos de comportamento histérico, o paciente estava fingindo", o
que o levava muitas vezes a gritar com seus pacientes. Forster
definia a histeria como uma simulação carregada de emoções: os
sintomas histéricos seriam comportamentos motivados pela intenção de
obter alguma vantagem (Binion, 1978).
Em um artigo sobre O sistema nervoso, publicado em 1922 no Tratado de Fisiologia Patológica, Forster escreve com evidente desprezo sobre os neuróticos de guerra:
"... que, de medo do front,
produzem todos os tipos de sintomas histéricos, e com isso conseguem
ser mandados para hospitais ou mesmo para casa, se avaliados por
médicos pouco especializados. Esses indivíduos sabem muito bem usar
essas técnicas histéricas para serem atendidos em suas solicitações
antes mesmo que pacientes mais graves."
Este
comportamento impulsivo de Forster, além de sua concepção sobre a
histeria, foram mais tarde criticados pela comunidade acadêmica e
prejudicaram sua ascensão na carreira universitária (Binion, 1978).
No
dia 15 de novembro de 1918, Forster deixou o Corpo Militar. Ele foi
condecorado tanto com a Cruz de Mérito de Primeira e Segunda Classes
como com a Cruz Hanseática de Hamburgo e a Cruz de Mérito Militar da
Bavária de Quarta Classe.
Internação psiquiátrica
A
segunda parte desta história ocorre na região de Ypern, uma região
montanhosa da Bélgica. Em outubro de 1918, durante um ataque inglês
ao sul de Werwik, o cabo Adolf Hitler, mensageiro do 16º Regimento
Bávaro de Infantaria, ficou temporariamente cego em conseqüência de
um ferimento provocado por uma granada de gás mostarda (versão
oficial).
Na Primeira
Guerra Mundial, foram registrados vários casos da chamada cegueira
histérica, de origem psicossomática. Essa cegueira era considerada
uma variação das diversas histerias de guerra, que se manifestavam
devido à sobrecarga emocional no front, principalmente nas
situações de combate homem-a-homem. Obviamente, a cegueira resultante
de uma lesão física real, provocada, por exemplo, por uma granada de
gás, era muito mais comum (Trapp, 1968).
Depois
de alguns dias de internação em Oudenaarde e Gent, o paciente Adolf
Hitler foi transferido para a enfermaria psiquiátrica IV do Hospital
de Reserva da Prússia Pasewalk, perto de Stettin. Hitler, que ainda
se encontrava "cego" no dia 10 de novembro, sabia que a guerra estava
perdida para a Alemanha. Porém, apenas três dias depois, foi
declarado totalmente apto para o combate, sendo enviado para a tropa
de reserva em Munique.
Depois
do final da guerra, Hitler decidiu entrar para a política. Nunca
mais se falou do médico que o tratou, nem do método de tratamento.
Nunca se escutou uma palavra sequer sobre os acontecimentos em
Pasewalk. Hitler nunca mais se queixou de distúrbios visuais e não
retornou a nenhum médico para dar continuidade ao tratamento. No dia
31 de março de 1920, em seu relatório de guerra, o próprio Hitler
atesta que ele não reivindica nenhuma indenização por ferimentos de
guerra.
Ernst Weiss
A
terceira parte da história se passa na região de Maehren. Ernst
Weiss, nascido no dia 28 de agosto de 1882 na cidade de Bruenn, era o
segundo filho de Gustav Weiss, um comerciante judeu, e de sua mulher
Berta. Ernst Weiss perdeu o pai aos quatro anos de idade;
posteriormente, esta morte prematura do pai é considerada pela
ciência literária como o motivo da criação de personagens paternas
dominantes em sua obra.
Depois
de se formar no Colégio de Bruenn em 1902, Ernst Weiss estudou
medicina em Praga e em Viena, tendo freqüentado as aulas de Freud.
Weiss concluiu seu doutorado em 1908 e trabalhou como médico em Berna
e em Berlim, respectivamente, com o professor Theodor Kochers e com
August Bier. Em 1911, retornou a Viena e passou a trabalhar como
cirurgião no hospital de Wieden, dirigido pelo professor Julius
Schnitzler, irmão do médico e escritor Arthur Schnitzler.
Dois
anos mais tarde, Ernst Weiss iniciou atividade como médico no Navio
Áustria, também para tratar de tuberculose. A viagem levou Weiss ao
Japão, à China e à Índia. Seu primeiro romance, A Galera (Die Galeere), foi publicado em 1913 pela editora S. Fischer em Berlim.
Weiss
veio a conhecer Franz Kafka, que, depois romper seu noivado com
Felice Bauer, o acompanhou em viagem de veraneio para a cidade
dinamarquesa de Marielyst. Os dois autores tinham praticamente a mesma
idade, além de pertencerem à mesma classe social e cultivarem um
estilo muito parecido em suas obras literárias.
Em
agosto de 1914, Weiss foi convocado para o Regimento de Infantaria
de Linz, servindo até o final da guerra como médico de Regimento no front oriental e em diversos hospitais de guerra. Em 1916, Weiss publicou o romance A Luta (Der Kampf)
pela editora S. Fischer. Em 1918, foi condecorado com a Cruz de
Mérito de Ouro. Weiss trabalhou nessa época como cirurgião em um
hospital em Praga e mudou-se, em 1921, para Berlim. Nos anos
seguintes, produziu trabalhos literários bastante reconhecidos, como,
por exemplo, em 1931, o romance Georg Letham, Médico e Assassino (Georg Letham, Arzt und Mörder). Letham é um anagrama de Hamlet e trata-se de sua última obra antes da emigração para a França.
Depois do incêndio do Parlamento Alemão (Reichstag),
em 1933, Weiss viajou a Praga para cuidar de sua mãe, até o
falecimento desta em 1934. No mesmo ano, Ernst Weiss emigrou para
Paris. Porém, dois anos depois, a atriz Rahel Sanzara, com quem Weiss
vinha tendo um longo e próximo relacionamento, veio a falecer em
Berlim. Como ele mesmo revelava, Weiss sofreu de graves depressões
durante esta fase de sua vida.
Do
ponto de vista literário, Weiss pode ser comparado a Stefan Zweig e
Thomas Mann, tendo dedicado a esses autores, respectivamente, os seus
romances O pobre pródigo (Der arme Verschwender), em 1936, e O sedutor (Der Verfuehrer), de 1938.
Paris
No
verão de 1933, depois de Hitler assumir o poder, o professor Edmund
Forster viajou a Paris, onde seu irmão Dirk trabalhava como
conselheiro da embaixada alemã. Walter Mehring relatou na sua Biblioteca Perdida "o episódio no Café Royale, em Paris, em que aquele psiquiatra [Forster] contou a mim e aos colaboradores do Novo Diário,
Leopold Schwarzschild, Josef Roth e Ernst Weiss, sobre o fatal
prontuário médico do hospital de guerra de Pasewalk. Isso significava
alta traição." Segundo Mehring, Forster passou três dias com este
grupo e entregou a Schwarzschild duas cópias do prontuário de
Pasewalk para que ele as guardasse em segurança (Binion, 1978).
Na primeira edição do Novo Diário
do dia 16 de setembro de 1933, Leopold Schwarzschild mencionou outro
detalhe sobre a estadia de Forster em Paris: "Conversando com um
repórter do Novo Diário, Forster haveria dito, com resignação, que finalmente havia chegado a sua hora. Disse também aos repórteres do Novo Diário que não deveriam acreditar em suicídio se ouvissem falar de sua morte nas próximas semanas" (Lewis, 2003).
Schwarzschild
escreveu também que Forster tinha contado como ele, enquanto morava
em Berlim, havia tratado a cocainomania de Hermann Goering, e que
também tinha diagnosticado como psicopata inimputável o ministro da
educação nazista Bernhard Rust, acusado de estupro (Binion, 1978).
Segundo Bernhard Horstmann:
"Hoje,
depois de pesquisas exaustivas, nós sabemos, com certeza, que
aqueles documentos particulares de Edmund Forster, que a Gestapo
procurava tão rigorosamente, foram tirados da Alemanha e levados a um
grupo de escritores exilados em Paris. Tanto Alfred Doeblin como
Ernst Weiss tinham conhecimento médico e cientifico suficientes para
entender as anotações clínicas [sobre o caso Hitler] e usá-las em sua
obra. Talvez Doeblin, como neurologista e psiquiatra, entendesse
ainda mais do assunto. Todavia, Forster decidiu deixar suas anotações
com Ernst Weiss, provavelmente porque ele tratava em sua obra literária
de temas relacionados à medicina e às ciências naturais. De
qualquer forma, foi Weiss quem finalmente usou o conteúdo dos
prontuários de Pasewalk em um romance" (Horstmann, 2004).
O
historiador americano Rudolf Binion, que teve a oportunidade de
falar com um filho de Forster, alertou sobre mais um detalhe:
"Parece
que havia também um segundo boletim médico oficial, redigido por
Forster e guardado a sete chaves até o começo dos anos 1940 por
Wilhelm Canaris, chefe da Defesa do exército alemão, e por Heinrich
Himmler" (Binion, 1978).
O suicídio de Edmund Forster e outras perseguições
Em
abril de 1925, Edmund Forster tornou-se catedrático em Greifswald.
Ele trabalhava fundamentalmente na área da neurocirurgia, mas também
desenvolvia diversos experimentos. Forster chegou a testar em si
mesmo os efeitos da substância mescalina, para provar que as alucinações
seriam resultado da falha na capacidade de distinguir a imaginação
da percepção (Binion, 1978).
No
dia 5 de julho de 1933, Forster dirigiu-se de automóvel a Paris,
acompanhado de seu assistente-chefe, o doutor Julius Zádor. Apesar de
sua elevada qualificação científica, Zádor, que era judeu húngaro,
fora reprovado em seu concurso de livre-docência em 1930.
Em
1º de setembro de 1933, enquanto Forster comemorava o aniversário de
oitenta anos de sua mãe em Nonnenhorn, uma cidade situada na região
do Lago de Constança, chegava à sua universidade uma carta do
Ministério da Cultura, suspendendo-o imediatamente de seu cargo. No
dia seguinte, uma segunda carta assinada pelo mesmo ministério
determinava que a diretoria da faculdade efetivasse rapidamente a
suspensão do médico, ordenando ainda que fossem especialmente
investigadas as acusações contra a ideologia política de Forster
(Horstmann, 2004). Essa carta veio acompanhada de uma denúncia de
cinco páginas, sendo o autor das denúncias o filho do reitor da
faculdade, o estudante de direito Eugen Oklitz, de Berlim. A irmã
dele, Luise Oklitz, trabalhava então como assistente de laboratório
na clínica psiquiátrica. O relatório começava da seguinte forma:
"O
diretor da clínica psiquiátrica de Greifswald, professor Forster,
pensa e raciocina como um judeu. Todos sabem de sua ideologia
claramente anti-nacional-socialista, de suas tentativas de
ridicularizar o governo e de sua convicção de um ‘Quarto Reich’.
Todos se revoltam com o fato de que este homem de ideologias marxistas,
que foi nomeado catedrático da clínica psiquiátrica de Greifswald
por motivos mais que duvidosos, ainda esteja no cargo. Mesmo os seus
amigos se perguntam por que este parasita judeu amoral continua
dirigindo a sua clínica infestada por idéias amorais, onde os médicos
invadem de noite os quartos das enfermeiras..."
O
denunciante falava de fotografias pornográficas, difamando as
colegas da clínica, que seriam vítimas das orgias alcoólicas de
Forster. Finalmente, dizia ele que Forster tornara-se catedrático
unicamente pelo fato de ter-se casado com a ex-secretária de Matthias
Erzberger, político do centro (N.T.: Erzberger assinara o cessar-fogo
de Compiègne no dia 11 de novembro de 1918 e foi assassinado em 1921
por dois ex-oficiais).
Oklitz
atuava por ordem da Gestapo. A carta de denúncias, datada de 16 de
agosto de 1933, incluía declarações ofensivas contra personalidades
de liderança do Terceiro Reich, insinuações sobre a questão da causa
do incêndio do Reichstag, além de relatos de comportamento amoral e desperdício de dinheiro da universidade (a viagem de carro a Paris).
Nesse
contexto, Edmund Forster cometeu duas tentativas de suicídio, uma
pela ingestão de extrato de nicotina e outra por tentativa de
enforcamento. Em ambas as ocasiões, ele foi salvo por sua esposa e
por seu colega, o doutor Kroll. Para a família, Forster dizia que o
caso não se resolveria com sua demissão, e que ele temia ser levado
preso pela Gestapo. Quando aumentou a pressão contra ele, com o
reinício dos interrogatórios, ele finalmente se suicidou com um tiro
de revólver, no dia 11 de setembro de 1933, em seu apartamento em
Greifswald. Ninguém sabia da existência desse revólver. Este é, para
Horstmann, um importante indício de que "Forster não somente foi
obrigado pelos membros da Gestapo a se suicidar, mas que a Gestapo
também providenciou a arma necessária para a execução" (Horstmann,
2004).
É curioso que Forster publicara, no mesmo ano de 1933, um artigo no Jornal Semanal de Medicina de Munique com o título Quando o clínico geral deve suspeitar de idéias suicidas e como ele deve reagir neste caso (Wann muss der praktische Arzt Suizidneigung vermuten und wie verhaelt er sich dann, Münchmner Medizinischen Wochenschrifft, 80p, 1933).
Forster
deixou uma esposa e dois filhos, Balduin Konrad e Ruprecht Waldemar,
de 13 e 12 anos de idade. Os dois filhos também se tornam médicos.
Ruprecht Forster faleceu aos 34 anos, no dia 12 de agosto de 1955, em
Basiléia. Balduin tornou-se professor do Instituto de Medicina
Forense da Universidade de Friburgo.
O chefe de Forster, professor Karl Bonhoeffer, escreveu no seu necrológio, publicado no Jornal Alemão Semanal de Medicina:
"Professor
Edmund Forster, diretor da Clínica Psiquiátrica de Greifswald, em
uma forte crise depressiva, terminou espontaneamente com sua vida no
dia 11 de setembro. Forster não era um homem comum. Ele podia ser
considerado um artista que sofreu bastante por causa do seu temperamento
difícil. Todos que trabalharam por mais tempo com ele sabem que sua
vida tempestuosa era movimentada por um verdadeiro fanatismo na
procura da verdade científica. Dentro dele escondia-se um homem
bondoso e fiel, e um médico zeloso. Com sua morte, a Ciência perdeu
um excelente neurologista e um clínico estimulador e inovador. A sua
luta pela realização da biópsia do cérebro, o seu trabalho científico
que provou a existência de espiroquetas vivas no cérebro do
sifilítico com paralisia geral progressiva, o seu tratamento da
sífilis e os seus estudos no líquor de pacientes com tumor cerebral,
demonstram suas excelentes contribuições científicas. Os seus
trabalhos sobre a afetividade e a histeria, sobretudo, caracterizam
bem o cientista Forster".
Edmund
Forster não foi a única vítima do prontuário médico de Hitler: o
médico doutor Karl Kroner, nascido em 1878, também atuou no caso do
cabo Hitler, confirmando o diagnóstico de cegueira histérica feito
por Forster. Em março de 1943, Kroner relatou este fato ao Escritório
Americano de Serviços Estratégicos (US Office of Strategic Service –
OSS). Em 1938, no dia seguinte à Noite dos Cristais (N.T.: Reichspogromnacht ou Reichskristallnacht:
Noite de Cristais – noite de 9 a 10 de novembro de 1938, quando
todas as sinagogas da Alemanha foram incendiadas. Esta data marca o
começo da destruição em massa do povo judeu pela Alemanha Nazista),
Kroner foi detido e enviado para o campo de concentração de
Oranienburg, de onde foi solto 13 dias depois graças à intervenção do
embaixador da Islândia, conhecido de sua esposa. Com a condição de
deixar o país em 24 horas, Kroner fugiu inicialmente para Copenhague e
depois para Islândia, onde viveu com sua família até 1945. Após o
término da guerra, mudou-se para os Estados Unidos, onde morreu em
1954.
O coronel
Ferdinand Eduard von Bredow, que mandou guardar os documentos do
hospital militar de Pasewalk, reconheceu o conteúdo comprometedor do
boletim e comentou com outras pessoas que a cegueira de Hitler de
outono de 1918 era unicamente de origem histérica. Foi detido pela
Gestapo e assassinado na madrugada do dia 1º de julho de 1934 (a Gestapo
afirmou que ele estava fugindo).
Pouco
tempo antes, o General Kurt Schleicher, que também tinha
conhecimento do dossiê, foi assassinado juntamente com sua esposa.
O
caso do professor de psiquiatria da Universidade de Heidelberg, Karl
Wilmanns, mostra também como a Gestapo observava todos os envolvidos
no caso da neurose de guerra de Hitler. Segundo boatos, Hitler foi
examinado e tratado numa clinica psiquiátrica em Heidelberg. Esse
fato não é verídico, mas o professor Wilmanns, em suas aulas, chamava
Hitler de "histérico" em frente aos seus alunos. Logo após Hitler
assumir o poder, Wilmanns foi detido e interrogado pela Gestapo,
perdendo em seguida todos os cargos (Waite, 1977). Esse episódio
mostra que a perseguição rigorosa de todas as pessoas possivelmente
envolvidas com um histórico psiquiátrico do novo Chanceler do
Terceiro Reich (Reichskanzler) era uma campanha meticulosa e bem dirigida (Horstmann, 2004).
Ernst Weiss e a testemunha ocular
Em Paris, o médico e escritor Ernst Weiss escreveu a sua última obra literária, o romance A Testemunha Ocular (Der Augenzeuge).
Trata-se de um romance político, cujo personagem central é um médico
(isso é comum na obra de Weiss). As seguintes frases ilustram a
preferência deste personagem pela área da psiquiatria:
"Eu
me interessei por um fenômeno que, na época, era estudado mais
profundamente pela jovem escola dos psiquiatras judeus e sob a
influência de Charcot: a histeria e os chamados distúrbios
psicógenos, provocados pela mente. Trata-se, em parte, de distúrbios
mecânicos, como, por exemplo, as dificuldades para andar, mas também
de distúrbios funcionais, como a cegueira, a surdez, a mudez e a
anestesia histéricas. Trata-se da procura do caminho que leva da
mente consciente [N.T.: o autor chama de Tagesseele] para a mente profunda [N.T.: o autor chama de Unterseele],
em que a hipnose e a análise são de grande valia. Esta área de
estudo também é interessante para fins legais, pois os distúrbios
psicógenos são freqüentemente relacionados à simulação, e eu me
tornei especialista no assunto..." (Weiss, 1966: 287p).
Justamente
esta última frase parece se referir ao trabalho científico de
Forster e às suas publicações sobre reação histérica e simulação. Mas
essa sugestão está errada. O personagem principal do romance não é
Edmund Forster, pois somente os fatos que se passam no hospital de
guerra de Pasewalk coincidem com a biografia dele.
Numa
autobiografia fictícia, o psiquiatra sem nome do romance de Weiss,
nascido no sul da Alemanha, conta sua vida do final do século XIX até
os tempos da Guerra Civil Espanhola. Já as primeiras frases deixam
bem claro qual seria o episódio central do romance:
"Eu
fui destinado a desempenhar um papel significativo na vida de um
homem estranho, o qual, depois da I Grande Guerra, viria a provocar
imenso sofrimento e mudanças radicais na Europa. Muitas vezes
perguntei-me o que me teria levado, naquela época, no outono de 1918,
a intervir daquela forma: se era curiosidade – a qualidade principal de
um cientista trabalhando na área médica – ou o desejo de ser como
um deus e mudar o destino de uma pessoa" (Weiss, 1966: 7p).
O
médico, portanto, encontra esse "homem estranho" no hospital de
guerra de Pasewalk. Ele é "uma pessoa agitada, que sofre de insônia e
de cegueira em conseqüência da guerra; um cabo do Regimento Bávaro
de List, ordenança do Estado Maior do Regimento, A.H. Ele é
condecorado – como o médico também – com a Cruz de Mérito de Iª
Classe.
"Alertaram-me
de que ele era uma pessoa fanática e querelante que sempre
perturbava, agitava e comandava, e contra o qual seria necessário
tomarmos medidas disciplinares severas" (Weiss, 1966: 133p).
O
historiador Rudolf Binion afirmou, convencido: "Com certeza o
personagem A.H. do romance de Weiss é o ‘neurótico de guerra’ que
Forster descreve" (Binion, 1978).
O médico do romance também sabia que:
"O
destino de uma pessoa que sofre de cegueira histérica é fatal. Esta
pessoa é mais aleijada do que alguém que tem duas próteses no lugar
das pernas. Ela é mais infeliz do que um ‘cego de verdade’... Os
cegos de verdade conseguem enxergar com a alma; os cegos histéricos,
não... Seria possível curar este paciente? Eu pensei muito e cheguei
finalmente a uma conclusão: eu poderia tentar libertá-lo de seus
sintomas fazendo-o acreditar em uma engenhosa analogia de seu
sofrimento com a sua ânsia por prestígio e o desejo de tornar-se
semelhante a Deus, e com sua energia descomunal. Isto poderia
liberá-lo dos sintomas. Eu não aceitava a idéia de não poder curá-lo.
Neste ponto eu estava cego. Não queria enxergar porque eu havia me
apaixonado pelo caso. Eu também queria atuar, tinha que agir. Eu
queria dominar, e todo ato significa um domínio, uma modificação e
intervenção ativa no destino. A.H. também interveio no destino, ele
preferiu ficar cego a ter que assistir à queda da Alemanha, o que
demonstra uma força de vontade extrema" (Weiss, 1966: 143p).
Este
é o eixo do romance: em 1918, no hospital de guerra de Pasewalk, um
psiquiatra cura, mediante a hipnose e a auto-sugestão, o paciente
A.H. de sua cegueira histérica. O médico não consegue libertar o
paciente de suas ideologias políticas e do seu ódio, mas é
bem-sucedido em restabelecer e inflar a sua autoconfiança, o que – do
ponto de vista do médico – o faz co-responsável pela terrível
carreira e ascensão de A.H.; esta é a interpretação do médico e o
motivo para o seu desespero profundo.
Como
o médico mantinha consigo esses documentos secretos e, além disso,
era casado com uma judia, ele é enviado em 1933 a um campo de
concentração, onde quase veio a falecer em conseqüência de graves
espancamentos sofridos. No entanto, consegue ser libertado porque sua
mulher entrega os documentos a um ajudante de Roehms, na Suíça.
Física e psiquicamente debilitado, ele se desespera, porque a sua
liberdade fora comprada. Ele decide ir para a Espanha e ajudar, como
médico, os defensores da República na luta contra o fascismo.
Apesar
da estatura franzina, Ernst Weiss era uma pessoa sensível. Esperando
receber uma ajuda financeira, pois era um escritor pobre, inscreve o
manuscrito deste romance no concurso American Guild for German Cultural Freedom.
Lion Feuchtwanger, Thomas Mann, Bruno Frank e Rudolf Gilden faziam
parte do júri. Weiss sabia ser um autor alemão de renome, mas,
naquela época, já estava recebendo ajuda financeira desta
organização, além de contribuições financeiras pessoais de Thomas
Mann e Stefan Zweig. Em 1939, apesar de ter revisado todo o
manuscrito, Weiss não conseguiu o resultado esperado no concurso. Com
isso, tornou-se cada vez mais depressivo, se suicidando em 15 de junho
de 1940, quando as tropas alemãs invadiram Paris: em seu quarto de
hotel, ele entrou na banheira, cortou os pulsos e tomou veneno,
falecendo na noite seguinte no Hospital Lariboisière. Seu túmulo, no
Cimetière de Pantin, desapareceu há muito tempo.
O
suicídio não era um fenômeno raro entre escritores exilados, como,
por exemplo, Walter Benjamin, Walter Hasenclever, Ernst Toller e
Stefan Zweig. O que é trágico nesta história de Weiss é que pouco
tempo depois de cometer suicídio, a tão esperada ajuda seria
concretizada: Thomas Mann, usando seu relacionamento com Eleanor
Roosevelt, estava prestes a conseguir para Weiss um visto para os
Estados Unidos e um emprego como leitor em Hollywood (Horstmann,
2004).
O romance A Testemunha Ocular
foi publicado postumamente em 1963 pela pequena editora
Kreisselmeier (Icking/Munique). O título, todavia, foi modificado
para Eu, a Testemunha Ocular (Ich, der Augenzeuge).
Esta modificação era juridicamente necessária porque, em 1959, havia
sido publicado pela editora Hanser o romance de Alain Robbe-Grillets Le Voyeur, cujo título em alemão era Der Augenzeuge.
O título original pôde ser usado somente em 1982, quando a editora
Suhrkamp publicou todas as obras de Ernst Weiss em 16 volumes em
memória ao seu centenário do nascimento.
Ana Seghers homenageou o médico e escritor Ernst Weiss em seu romance Transit,
através do personagem do poeta Wedel. Mesmo assim, Weiss faz parte
dos "tragicamente esquecidos" (Bloecker, 1966). Embora Weiss tenha
sido declarado por seu amigo e companheiro Hermann Kersten "um dos
romancistas europeus mais importantes do século XX", até hoje ele
permanece na lembrança dos leitores e dos críticos como um escritor
desconhecido e, sobretudo, subestimado.
O
boletim médico de Hitler continua desaparecido. Isso não evitou,
todavia, que os fatos relacionados à sua internação em Pasewalk e o
seu diagnóstico ficassem conhecidos. Os fatos aqui narrados permitem
especular sobre as conseqüências terríveis que a psicopatologia nele
descrita, assim como o seu tratamento, podem ter tido para a
humanidade.
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