No
dia 20 de novembro celebrou-se a festa de Zumbi dos Palmares, herói
negro do tempo da escravidão, criador do célebre quilombo dos Palmares,
foco principal e fundamental da resistência negra no Brasil.
Neste dia, os negros celebrarão sua negritude e proclamarão bem alto o
orgulho que têm da cor de sua pele e da África mãe que os gerou e
configurou tal como são, com seus cabelos crespos, sua pele escura, sua
carnadura firme e seu incomparável talento para a música e a dança.
A festa de Zumbi não é uma católica nem cristã. Por que, então,
escrever sobre ela? O motivo é que nos parece que no fundo
desta festa e das razões que a fazem existir está algo que interpela profundamente toda consciência humana e portanto, também e não menos, a consciência cristã. No Brasil de modo especial, onde parece que vivemos ainda a ilusão de sermos um país branco e de brancos, feito apenas ou majoritariamente de europeus, essa reflexão se impõe talvez mais que em outras partes do globo. Pensar que o Brasil é branco é uma perversa e diabólica ilusão.
Nenhum país latino-americano, aliás, o é. E com o processo de
globalização que vivemos, onde as migrações vão acontecendo a cada dia
em todas as direções, transformando os países do primeiro mundo em
sucursais do antes chamado terceiro mundo, nenhum país do mundo
realmente o é. As grandes cidades européias e norte-americanas têm hoje
suas ruas e praças cheias de
africanos que lá vão estudar ou trabalhar e vivem a moderna forma da
escravidão que a modernidade perversamente lhes legou.
Dentro deste quadro continental e mundial, o Brasil
tem particularidades muito especiais. Além da matriz européia e
indígena, temos em nossa população um componente importante de
africanidade que se desdobra em vastos e pluriformes matizes de
mestiçagem, dando a nossa paisagem populacional os mais variados tons e
semi-tons. No entanto, a história do Brasil em relação aos negros não é das mais transparentes e positivas.
Os profetas e poetas estão aí para não nos deixar mentir. Foi assim
que a voz inspirada e indignada do grande Castro Alves ressoou em
memorável poema “O Navio Negreiro”, onde interpelava toda a nação brasileira,
dizendo, diante dos horrores que seu olhar presenciava na tragédia
africana acontecida nos navios que traziam escravos da África até a nova
colônia:
“Mas que povo é este que a bandeira empresta
Para cobrir tanta infâmia e covardia?”
E ao perceber que se tratava do pendão de sua própria pátria, tão
amada, o choque é tal que sua musa silencia:
“Silêncio, musa!” Tomado pela indignação, o poeta convoca todos os
grandes heróis do continente, a fim de esconjurar a diabólica e perversa
crueldade praticada contra os escravos africanos. Exorta-os a bloquear
entradas e saídas de ares e mares, a fim de que aquele espetáculo não
possa mais se perpetrar.
“Mas é infâmia demais!
Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Andrada, arranca esse pendão dos ares! Colombo, fecha a porta dos teus mares!”
Tanto tempo depois, a musa dos poetas continua calada e os heróis do
então chamado Novo Mundo encontram-se bastante desmistificados pelos
estudos históricos contemporâneos. Os novos heróis, que crêem que outro
mundo é possível, seguem sendo vigorosamente interpelados pela situação
de discriminação na qual ainda vivem as raças diferentes da branca no mundo inteiro e em nosso país muito particularmente.
A festa de Zumbi dos Palmares é ocasião propícia para examinar nossa
consciência e nosso agir em relação aos descendentes de africanos que
são parte de nossa população e cujo sangue corre em diferente proporção
nas veias da maioria de nós todos. Zumbi não é um santo católico. Nem é
uma figura religiosa de destaque. Mas para o povo negro é um poderoso
símbolo de luta e resistência, uma lenda viva que anima a raça negra em
sua longa caminhada por uma consciência mais profunda de seus direitos.
A negra Senhora Aparecida nas águas do Paraíba nos inspire a
nós, cristãos e católicos, a transfigurar sempre mais nosso olhar no
sentido de perceber aqueles que são diferentes e amar sua diferença.
Enquanto o povo negro celebra sua festa e esperanças , é mais que tempo
de que todos, de todas as raças,
etnias, religiões e culturas, celebremos com alegria o fato de que na
verdade só existe uma raça, multiforme, multicor: a raça humana.
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora e decana do Centro de teologia e ciências humanas da PUC-Rio. |
Brasil: Uma raça multiforme e multicor
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